quarta-feira, 30 de outubro de 2024

O uso distorcido da terminologia quântica por políticos, coaches, megaempresários, “criadores de conteúdo” e de máquinas e comentadores em geral!

 

Um tema com a qual sempre esbarramos no território multifacetado da internet e, que, por vezes, vem a baila com mais intensidade – como esse que vivenciamos agora, de eleições e, em um contexto mais geral, da virtualização das coisas, metaverso e outros ramos e galhos – é aquele referente à teoria quântica e a sua utilização para a construção de discursos, argumentos, narrativas ou algo do tipo.


É muito comum pressupostos referentes a teorias e paradigmas serem transpostos para o corpo social e suas conceituações. Isso aconteceu com a teoria atômica, por exemplo, que tem mais de dois milênios, considerando sua primeira proposição, e também com o mecanicismo, que surgiu com modernidade, e que produziram um impacto considerável em vários contextos.


Embora humanos e humanas há muito tempo na sua trajetória sobre a Terra tenham alguma consciência deles mesmos como algo que se diferencia das demais coisas que compõem a “realidade”, por exemplo, a noção de sujeito que se formou nos últimos séculos, e de mente e de racionalidade, deve muito à teoria atômica (principalmente à noção de átomo que se tinha até o final do século XIX) e ao mecanicismo, o que, consequentemente, contribuiu para uma preponderância do materialismo para a humanidade e seu engenho.


Entendimentos advindos das teorias, experimentos e debates da física quântica podem ser transpostos para a sociedade, a política e as relações sociais, isso não é algo proibido. O problema não é necessariamente esse – talvez fosse a solução, inclusive - mas, sim a distorção desses pressupostos, principalmente, quando visam iludir e falsear o discurso, por vezes para lucrar bastante com isso!


Nesse sentido, a adaptação ou transposição, em “essência”, não é necessariamente um problema, por assim dizer, uma vez que tem se mostrado como algo praticamente inevitável no que se refere a teorias e ideias, como o exposto acima. Algo muito diferente disso é considerar que qualquer situação possa ser explicada ou contemplada por esse “procedimento”, que isso seja feito de qualquer maneira ou que um termo ou uma teoria seja tida como uma panaceia geral, o coringa do baralho ou algo que o vaila. Ou seja, não é só pronunciar a expressão física quântica que tudo passa a ser quântico ou que tudo se resolve ou se torna verdadeiro ou que qualquer coisa possa estar sob o guarda-chuva daquele termo e seus pressupostos. O que se vê, inclusive, é que dizer que tudo é quântico é como se desobrigasse as pessoas de consequências e/ou explicações sobre as temáticas a que aplicam aquele argumento.


Mas, então, o que seria essa tal física quântica, o que a faz ser tão “famosa” e utilizada dessa forma?


O que a física quântica vem mostrando desde seus primeiros postulados, experimentos e teorias, é que aquilo que se considerava com relação à realidade física, com base nas leis e teorias científicas que a antecederam, não o é assim. Ou seja, que no nível atômico não há o determinismo e a correspondência que a teoria newtoniana, por exemplo, considerava, com base em seus arcabouços teóricos e experimentais – nem também no nível de universo ou espacial, afinal, a astrofísica e a cosmologia ainda hoje sabem muito pouco, por exemplo, sobre o que se passou a chamar de matéria escura e energia escura, diga-se de passagem.


Tratarei agora brevemente de modelos atômicos para buscar expor algo sobre o contexto quântico e, consequentemente, a distorção que se faz desses pressupostos. O átomo de cada elemento químico tem um número de subpartículas atômicas que o constitui e define (o que se aprendia até pouco tempo na escola como sendo os prótons, nêutrons e elétrons). Em um modelo clássico a distribuição dessas partículas se dava de maneira contínua, sem interrupções, ou “proibições”. Usando uma analogia, seria como se os elétrons do átomo fossem mosquitos a girar em torno de uma lâmpada, que seria o núcleo, e que cada ponto do espaço próximo à lâmpada poderia, por ventura, ser ocupado em algum momento por algum dos mosquitos.


O que a teoria quântica trouxe, ainda de acordo coma analogia utilizada, é que ao “observar” os átomos por meio de experimentos, haviam regiões onde os mosquitos/elétrons estavam presentes e outras em que nunca havia nenhum mosquito/elétron. Ou seja, que existiam quantidades específicas de energia que faziam os mosquitos/elétrons se apresentarem em determinado lugar ou em outro e que sua transferência de um para outro nível se dava pelo recebimento de “pacotes”/quantidades específicas, de energia, daí o termo quantum – não é engraçado que uma teoria que começou assim por vezes seja sinônimo de que tudo é possível?


Essa foi uma das primeiras “constatações”. As demais ramificações da teoria foram trazendo a compreensão de que os elétrons por vezes se comportavam como ondas (que vibravam) e outras como partículas (como algo material e consistente). Ganhava corpo - isso não foi um trocadilho (rsrs) – a teoria ondulatória para a matéria, que levou a se considerar, nos seus pressupostos seguintes, que o átomo (e por conseguinte tudo, como propôs De Broglie) é uma densidade de probabilidade de energia, que estando mais concentrada pode se chocar como uma partícula, por assim dizer, e que, em outras situações pode contornar obstáculos, como uma onda em um lago contorna um graveto da vegetação.


Assim, com a física quântica e a física estatística, a “realidade” passa a comportar uma dimensão de probabilidade, de possibilidade! É nesse trecho que os chamados “criadores de conteúdo” (formadores de opinião de todo tipo, incluindo megaempresários, políticos e muitos outros) e coaches bebem (rsrs), distorcendo e alterando sobremaneira os significados – mesmo sem saber por vezes o que estão fazendo.


Como já exposto acima, a modernidade foi moldada pelo mecanicismo e atomismo clássico, que considera que os mosquitos/elétrons, usando a analogia que vem sendo utilizada aqui, se movem livremente no espaço. Assim, um mecanicista considera que se eu souber o tempo e a velocidade eu sempre vou saber onde estará aquele mosquito/elétron, por exemplo. É um entendimento determinista porque considera que se pode determinar seguramente tudo – foi isso que possibilitou toda a grilhagem moderna e atual, inclusive!


O que os coaches, e demais comentadores que utilizam o “imaginário” quântico para tecer suas considerações, fazem, é misturar o determinismo, que como vimos é de um contexto histórico e teórico não-quântico, com os pressupostos desta nova física. Vendem que tudo é possível e que mesmo assim se pode determinar como será o futuro ou o fruto da ação! Está aí a lucana do argumento, a sua falha, por assim dizer. A mente e a forma de entender a realidade continua sendo determinista, clássica e particular (e não-ondulatória, nem probabilística), apenas se junta a isso um entendimento virtual (no sentido mais geral do termo e não apenas aquele relacionado à internet) de possibilidade. Está pronto o curso! Se se conecta a isso a noção religiosa de prosperidade, então tem-se quase a salvação! A noção de prosperidade, que a considera como sinônimo de alcance financeiro, é, por si só, uma grande distorção, diga-se de passagem!


Recentemente vimos eclodir nas redes uma narrativa que lançou a ideia de que seríamos algo como um holograma ou algo do tipo, lincando isso a um ramo controverso e especulativo de teorias físicas mais recentes. O que se colocou no parágrafo anterior se aplica à situações como essa. Falam em temas populares e que flertam com a ficção científica para conquistar a atenção, mas o objetivo, o procedimento, a mentalidade e o arcabouço conclusivo é sempre clássico, material, e que envolve, quase sempre nesses casos, vendas de produtos diversos ou de ideias, e muito lucro financeiro.


Essas pessoas aproveitam que tais teorias não são de fácil compreensão e que raramente são explicadas e explicitadas as suas peculiaridades e as utilizam para construir suas proposições retóricas!


Nem tudo é possível, nem tudo leva ao sucesso financeiro e a uma vida bem-sucedida, nesses moldes que se vende! Isso na verdade quase sempre só acontece com quem já possui muitas possibilidades na vida, isso sim! Ou estão dispostos a criá-las de qualquer forma! Ou seja, as múltiplas possibilidades no sentido que essas pessoas vociferam não é algo que existe para todos, só existe para algumas, logo, não é só querer ou trabalhar que se consegue! Mas quando eu douro esse fraseado com física quântica e religião, por exemplo, fica parecendo que sim, que isso é uma lei ou algo que está aí para todos.


O caso é que se vende essa ideia porque ela é muito cômoda, muito oportuna, para empresários, cosches etc, por permitir que pessoas que buscam enriquecer de alguma ou de várias maneiras, e que depois de um tempo se tornam ricas, colem aquele slogan e, portanto, possam criar suas narrativas meritocráticas.


Assim, se busca-se aplicar os pressupostos quânticos à “realidade”, à vida e ao convívio social, não se deve manter a cabeça determinística e clássica e pensar que tudo é possível (algo que nem sequer é posto pela física quântica, inclusive), mas, abrir-se para a alteridade, para a incerteza, para o imprevisto da vida - não como catástrofe e niilismo, mas como possibilidade e devir, estando sempre atento [até porque, as guerras e as maiores devastações são sempre fruto de uma crença ou uma inflexível certeza sobre tudo!] - e respirar na calma que isso possa trazer, por se entender que não estamos no controle, na verdade, de nada! Nesse contexto não há espaço para medo, por exemplo. Não é à atoa que a teoria atômica trata da complementaridade… Mas isso é um papo para outro possível momento (rsrs)!


Adaécio Lopes é graduado em física, doutor em educação, poeta & artista gráfico-visual.