quinta-feira, 6 de abril de 2023

“ENTREGAR”: ENTREGUISMO, CAPITALISMO E LINGUAGEM

Uma palavra tem me incomodado nos últimos tempos, por estar em quase todo lugar, nos mais diversos contextos. Vejo essa palavra aparecendo e mobilizando discursos. Não sei se alguém já teve a percepção do que vou expor agora. Discorrerei um pouco sobre o ENTREGUISMO, ou seja, termo que passo a usar para me referir a algo como quase um culto ao “ENTREGAR”.
Essa palavra ganhou evidência com o surgimento da atividade de TRANSPORTE de alimentos e outros itens por pessoas, em sua maioria jovens em bicicletas e motocicletas. Esse trabalho, que não tem praticamente nenhuma seguridade em termos de leis trabalhistas, se tornou algo muito comum nos últimos anos, principalmente depois da pandemia, estando muito presente nas grandes cidades. Esses profissionais passaram então a ser chamados de ENTREGADORES, onde na verdade o que são é TRANSPORTADORES.
Do ponto de vista da engrenagem CAPITALISTA o uso das palavras ENTREGAR e ENTREGADOR é muito mais conveniente do que TRANSPORTAR e TRANSPORTADOR (A). Isso porque, em última instância remete também à entrega de direitos, da força de trabalho, de tempo, braços, pernas, punhos etc. Quem se entrega está desistindo de lutar! Olha como já estamos longe da palavra TRANSPORTAR, a real atividade que esses trabalhadores desenvolvem.
E agora tudo é entregar, é a palavra da vez. Outro dia eu estava vendo um programa de dança e uma pessoa dizia que estava feliz pelo que a dançarina tinha entregado. Veja que coisa sem sentido! Eu sei que a linguagem é plástica, que a língua é mutável e a mudança de significado está sempre presente, mas, o uso abusivo da palavra entregar em todos os contextos abre sempre espaço para aquelas condicionantes que a palavra traz consigo e que foram expostas acima.
Uma outra nuance muito importante nisso tudo é a seguinte: se eu entrego, eu entrego sempre algo – este verbo exige o completo do que se chama de “objeto direto”, ou seja, a atividade de entregar remete inevitavelmente a algo material, trazendo a obrigatoriedade de uma concepção materialista para todas as relações. O capitalismo não existe sem produtos! Nesse regime as pessoas e as relações são sempre transformadas em produtos, esse é apenas um exemplo ainda mais absurdo e abusivo desse mecanismo.
O interessante é que ao se mencionar a palavra ENTREGAR para uma dança, se deve parar por aí, apenas se deve mencionar a entrega, porque se se remete ao que se está entregando, a sentença fica sem sentido. O que eu entrego ao dançar? Alegria, felicidade, contentamento, beleza etc. Como se transforma tais manifestações em um produto?
Não tendo como fazê-lo é melhor parar apenas no entendimento de que houve uma entrega, o que não deixa de fora uma certa obrigatoriedade de sempre se estar a entregar algo, construindo um espectro de materialidade e produto para algo que deveria ser apenas relacionado ao congraçamento ou algo nesse sentido. Ou seja, o espectro do ENTREGUISMO cria um produto VIRTUAL que está sempre tendo que ser entregue.
Não se entregue! Dance!
Adaécio Lopes
Poeta, artista, ensinante-mobilizante em física e ciência&arte.
* Imagem da internet.
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