sempre fui meio na minha por diversas questões. quando criança e
adolescente gostava de ficar de rolê na cidade. jogar sinuca, ver
ensaio de circo, jogar bola de meia no mercado público, ver a galera
jogar baralho na praça etc. numa dessas, passei, assim como vários
outros da minha idade a ajudar juraci a furar talos para fazer
gaiolas quando saía da escola, sempre busquei e fui afeito a
conviver com a coletividade. um dia resolvi fazer minhas próprias
gaiolas. era uma atividade bastante criativa, e que me mantinha
compenetrado e concentrado, minha primeira forma de meditação, por
assim dizer. daí a passar a capturar e criar passarinhos foi um pulo
– o que não tem necessariamente a ver com os preceitos
meditativSos. cheguei a ter mais de dez gaiolas com passarinhos na
área de casa, golinhas, bigodes, papas-capins, caboblos lindos,
galo-de-campina etc. as gaiolas eram grandes, com vários poleiros
para saltarem, com água e alpiste, frutas e brotos para eles, mas
sempre me incomodava aqueles bichos presos, mas cultura é algo que
nos permeia e naqueles tempos era uma febre ter passarinhos lá no
oeste, quando da minha infância.
em 1998 decidi que prestaria vestibular para o curso de física, a
matéria que mais me instigava na escola. em 1999 passei a morar em
natal para cursar o terceiro ano no instituto padre miguelinho. falei
com meu pai para cuidar dos passarinhos, pelo menos até eu voltar no
meio do ano, quando viria visitá-los, parentes e passarinhos.
fui morar na casa do estudante de natal. tudo muito novo para mim.
mais de quatrocentas pessoas morando juntas, bem diferente do mundo
em que eu tinha sido criado e no qual tinha convivido até então. no
primeiro semestre foi de adaptação. ficava mais jogando bola na
quadrinha em frente a casa com a galera do passo da pátria, indo pra
praia do meio a pé com a galera da casa. curtia muito ficar na praça
vermelha vendo os punks e skatistas que colavam por lá. me lembravam
os ciganos lá do oeste, sobretudo os punks, com aquelas pulseiras,
ilhoses e correntes. trabalhava na biblioteca da casa para ter acesso
ao restaurante. ficava perplexo com o por do sol que se projetava no
janelão daquele antigo sobrado. pensava que em algum lugar naquela
linha imaginária à oeste estava o olho d’água de onde eu tinha
vindo. lia mais poesia na biblioteca e coisas diversas. os colegas me
advertiam que o vestibular estava à porta e que eu deveria estudar
outras coisas. mas e daí, e no mais eu nem sabia se ainda ficaria
até o fim de ano na capital. mas eu curtia tudo aquilo também.
carlinhos de pau dos ferros em sonambulismo recitando augusto dos
anjos de madrugada nos corredores da casa, a galera reunida para ver
o primeiro lugar de zóio de lula na mtv, a batucada das panelas na
fila do rango, as brincadeira com alecrim, as estórias de mãe
luíza, as biritas no bar do alemão e bar do coelho, as andanças
pelo areado e ocidental de baixo, a convivência com ratos e morcegos
do grande prédio. quando faltava água ou energia a coisa ficava
louca, parecia algo como um presídio, salve geral e correria. ali
continuei a escrever poemas e passei a escrever também cartas.
um fato interessante e marcante aconteceu quando da minha chegada na
casa. quando ia subir para conhecer o piso superior onde a galera se
reunia para estudar me deparei com tikin, de são miguel, pessoa que
se tornaria um grande amigo durante minha estadia na cern. tikin ao
me ver falou logo cara:
- pia rapaz o gola, ele voltou kk.
- gola? perguntei.
ele me falou que esse era o apelido de um colega de são miguel que
tinha morado na casa e que eu era quase idêntico a ele, exceto pelo
formato do nariz, que, diga-se de passagem, fora o motivo do apelido,
pois parecia – segundo eles – com o bico daquela ave. tikin
juntou vários outros do clã de são miguel para que eles atestassem
que eu era a cara daquele golinha. e falou que quem daria o veredito
final seria “alf”, talvez por ser o mais chegado daquele antigo
morador, que estava pra chegar do cursinho. naquele mesmo dia eu fui
de fato rebatizado (rs) por aquele que atendia por alfinete.
dias depois daquilo eu liguei para casa e pedi a meu pai que abrisse
as gaiolas e soltasse todos os pássaros. ele não entendeu já que
eu cuidara tanto daquelas aves, mas me garantiu que o faria. de fato
agora não podia mais mantê-los presos, em sua maioria, golinhas.
para mim foi o sinal que faltava para então dar o salto à
liberdade. afinal, nem só de penas vivem os pássarinhos.
voltando das férias do meio do ano, decidi manter o projeto de ficar
em natal e cursar física, que tinha uma pequena concorrência no
vestibular, sendo um curso para o qual muito provavelmente eu seria
aprovado. o golinha é um pássaro pequeno, mas bastante firme na
postura e no canto, e algo como uma transfiguração parecia ter
acontecido. naquele ano perdi meu tio antônio e meu querido primo
inácio, mas eu não podia mais voltar.
fui aprovado no vestibular e passei no ano 2000 a morar na residência
universitária. no meu primeiro dia no restaurante universitário um
cara entra no restaurante pintado e em pernas de pau recitando
augusto dos anjos. o ambiente era mais tranquilo e seguro, inclusive
no sentido alimentício. pensei, “agora voltarão a me chamar pelo
meu nome aqui”. mas, naquele mesmo dia, hemerson, que também
morava na casa – que inclusive seria um dos meus colegas no quarto
seis da campus um - me viu no corredor da residência e gritou “e
aí golinha, você também passou!”. mais alguns anos de golinha eu
tinha pela frente. ainda hoje colegas e amigos daquela época me
chamam por esse epíteto.
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