domingo, 3 de maio de 2020

O nascimento de um golinha: a abertura das gaiolas


sempre fui meio na minha por diversas questões. quando criança e adolescente gostava de ficar de rolê na cidade. jogar sinuca, ver ensaio de circo, jogar bola de meia no mercado público, ver a galera jogar baralho na praça etc. numa dessas, passei, assim como vários outros da minha idade a ajudar juraci a furar talos para fazer gaiolas quando saía da escola, sempre busquei e fui afeito a conviver com a coletividade. um dia resolvi fazer minhas próprias gaiolas. era uma atividade bastante criativa, e que me mantinha compenetrado e concentrado, minha primeira forma de meditação, por assim dizer. daí a passar a capturar e criar passarinhos foi um pulo – o que não tem necessariamente a ver com os preceitos meditativSos. cheguei a ter mais de dez gaiolas com passarinhos na área de casa, golinhas, bigodes, papas-capins, caboblos lindos, galo-de-campina etc. as gaiolas eram grandes, com vários poleiros para saltarem, com água e alpiste, frutas e brotos para eles, mas sempre me incomodava aqueles bichos presos, mas cultura é algo que nos permeia e naqueles tempos era uma febre ter passarinhos lá no oeste, quando da minha infância.

em 1998 decidi que prestaria vestibular para o curso de física, a matéria que mais me instigava na escola. em 1999 passei a morar em natal para cursar o terceiro ano no instituto padre miguelinho. falei com meu pai para cuidar dos passarinhos, pelo menos até eu voltar no meio do ano, quando viria visitá-los, parentes e passarinhos.

fui morar na casa do estudante de natal. tudo muito novo para mim. mais de quatrocentas pessoas morando juntas, bem diferente do mundo em que eu tinha sido criado e no qual tinha convivido até então. no primeiro semestre foi de adaptação. ficava mais jogando bola na quadrinha em frente a casa com a galera do passo da pátria, indo pra praia do meio a pé com a galera da casa. curtia muito ficar na praça vermelha vendo os punks e skatistas que colavam por lá. me lembravam os ciganos lá do oeste, sobretudo os punks, com aquelas pulseiras, ilhoses e correntes. trabalhava na biblioteca da casa para ter acesso ao restaurante. ficava perplexo com o por do sol que se projetava no janelão daquele antigo sobrado. pensava que em algum lugar naquela linha imaginária à oeste estava o olho d’água de onde eu tinha vindo. lia mais poesia na biblioteca e coisas diversas. os colegas me advertiam que o vestibular estava à porta e que eu deveria estudar outras coisas. mas e daí, e no mais eu nem sabia se ainda ficaria até o fim de ano na capital. mas eu curtia tudo aquilo também. carlinhos de pau dos ferros em sonambulismo recitando augusto dos anjos de madrugada nos corredores da casa, a galera reunida para ver o primeiro lugar de zóio de lula na mtv, a batucada das panelas na fila do rango, as brincadeira com alecrim, as estórias de mãe luíza, as biritas no bar do alemão e bar do coelho, as andanças pelo areado e ocidental de baixo, a convivência com ratos e morcegos do grande prédio. quando faltava água ou energia a coisa ficava louca, parecia algo como um presídio, salve geral e correria. ali continuei a escrever poemas e passei a escrever também cartas.

um fato interessante e marcante aconteceu quando da minha chegada na casa. quando ia subir para conhecer o piso superior onde a galera se reunia para estudar me deparei com tikin, de são miguel, pessoa que se tornaria um grande amigo durante minha estadia na cern. tikin ao me ver falou logo cara:

- pia rapaz o gola, ele voltou kk.
- gola? perguntei.

ele me falou que esse era o apelido de um colega de são miguel que tinha morado na casa e que eu era quase idêntico a ele, exceto pelo formato do nariz, que, diga-se de passagem, fora o motivo do apelido, pois parecia – segundo eles – com o bico daquela ave. tikin juntou vários outros do clã de são miguel para que eles atestassem que eu era a cara daquele golinha. e falou que quem daria o veredito final seria “alf”, talvez por ser o mais chegado daquele antigo morador, que estava pra chegar do cursinho. naquele mesmo dia eu fui de fato rebatizado (rs) por aquele que atendia por alfinete.

dias depois daquilo eu liguei para casa e pedi a meu pai que abrisse as gaiolas e soltasse todos os pássaros. ele não entendeu já que eu cuidara tanto daquelas aves, mas me garantiu que o faria. de fato agora não podia mais mantê-los presos, em sua maioria, golinhas. para mim foi o sinal que faltava para então dar o salto à liberdade. afinal, nem só de penas vivem os pássarinhos.

voltando das férias do meio do ano, decidi manter o projeto de ficar em natal e cursar física, que tinha uma pequena concorrência no vestibular, sendo um curso para o qual muito provavelmente eu seria aprovado. o golinha é um pássaro pequeno, mas bastante firme na postura e no canto, e algo como uma transfiguração parecia ter acontecido. naquele ano perdi meu tio antônio e meu querido primo inácio, mas eu não podia mais voltar.

fui aprovado no vestibular e passei no ano 2000 a morar na residência universitária. no meu primeiro dia no restaurante universitário um cara entra no restaurante pintado e em pernas de pau recitando augusto dos anjos. o ambiente era mais tranquilo e seguro, inclusive no sentido alimentício. pensei, “agora voltarão a me chamar pelo meu nome aqui”. mas, naquele mesmo dia, hemerson, que também morava na casa – que inclusive seria um dos meus colegas no quarto seis da campus um - me viu no corredor da residência e gritou “e aí golinha, você também passou!”. mais alguns anos de golinha eu tinha pela frente. ainda hoje colegas e amigos daquela época me chamam por esse epíteto.

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