domingo, 3 de maio de 2020

Tocando no rádio


Sempre fui afeito à conversas, à narrativas de vidas ou, como se passou a chamar academicamente hoje em dia, às histórias de vida. Este é um recurso interessante para registro de informações, organizações de pensamento, sendo também uma forte forma poética. Não por acaso nas civilizações antigas um dos primeiros gêneros escritos foi a história de vida de pessoas. E nesse sentido, diga-se de passagem, os gregos também foram inventivos, por assim dizer, pois, como muitos estudiosos destacam, eles consideravam que o discurso é algo que diz, ou seja, algo como um exercício, uma catarse, um externar, que, se bem construído se torna interessante e belo, plástico no sentido estético, como uma verdade para aquele momento.

Eu acho que essa minha relação com a contação de história tem a ver com minhas vivências, andanças pelas estradas de terra do oeste escutando meu pai e muito mais gente conversar, trocar informações, e de ser de uma família em que as pessoas gostam de papear, de “jogar conversa fora”. Interessante essa expressão. Sempre penso sobre ela. E de como, a meu ver tem relação com o exposto acima acerca do discurso. Conversar e escrever é uma forma de nos jogarmos fora em um processo secreto de reorganização do nada interior. Afinal, “Não há mistérios em descobrir / O que você tem e o que gosta / Não há mistérios em descobrir / O que você é e o que você faz”.

A história não seria, assim, uma parada, mas um veículo, não importando tanto o passageiro, mas sim a viagem.

As máquinas são algo presente em minha caminhada, e por conseguinte os processos a elas relacionados e também parte destas. Máquinas e processos de costura, pequenas máquinas e processos de plantação e cultivo da terra, utensílios para construção de casas etc. Lembro de uma vez que Expedito Alexandre da Rocha – uma das minhas grandes referências de contação de estória e de histórias de vida, mostrou a Dionísio de Sebastião Pinto (que, diga-se de passagem, era outro grande contador de histórias) e a mim uma máquina de cortar cabelos. “Caramba! Tem máquina até pra cortar cabelos”, pensei naquele instante.

Como morava muro-com-muro com a Caern, adorava saltar para o lado de lá e ver os tanques, as bombas d’água, engrenagens, poços, tubulações, caixas d’água, parafusos, porcas e aruelas gigantes etc. Perguntei uma vez ao encarregado (que vivia a me expulsara dali e dizia que aquilo não era coisa para criança e nem para ninguém de fora) o que era aquele negócio que tinha em cima da caixa d’água, que parecia um espeto, se ele ajudava a água a subir. Ele me disse que era um para-raio e que servia pra proteger de tempestades. Depois eu entendi que ele ajuda os raios a descer, por assim dizer.

Ao lado do para-raio as tores e as antenas, pois a seguir tinha-se o muro da escola (depois prefeitura) e logo à frente a Telern. Fiz muito aquele percurso me misturando com os saguis, passarinhos da rua e muitos outros bichos. Ficava horas as vezes na calçada da Telern, embaixo de uma pitombeira que tinha, vendo as pessoas entrar e sair para enviar e receber informações. Era engraçado, tinha gente que eu acho que pensava que se falasse mais alto a pessoa com quem se correspondia entendia melhor ou mais depressa. Coisas do milênio passado (rs). Outra coisa a destacar daqueles tempos era o serviço de som da igreja, que servia tanto para passar hinos e coisas religiosas como para dar avisos à comunidade.

Aquele tempo era a época da febre das fm’s na região, com seus programas musicais. Minha tia adorava escutar aqueles programas. Um dia houve uma tentativa de furto do rádio do meu avô. Um alvoroço. Foi para mim, penso hoje, o primeiro caso em que tive notícia de tentativa de roubo ou apropriação de informação.

Poderia falar ainda da relação com a eletricidade e motores elétricos, de quando aprendi a instalar tomadas e interruptores, de como passei a querer colocar pontos de luz e energia em todo lugar, inclusive numa casa d’árvore que construí numa goiabeira no muro, mas essa é uma outra conversa.

Um dia decidiram lá em casa comprar uma televisão. Fomos e minha mãe comprar o aparelho em Catolé do Rocha, em pesquisa minha mãe soube que lá era mais em conta. Fomos com Antônio de Felinto, que sempre ia resolver coisas naquela cidade. Uma viagem tranquila, o Dodge andando de trinta a cinquenta quilômetros por hora, dando pra ver a paisagem que eu nunca tinha visto, sendo aquela a maior distância que eu tinha percorrido relativamente à cidade onde eu habitava. Escolhemos mamãe e eu uma TX daquelas pequenas brancas. Me maravilhou aquele vão de descida da igreja da cidade de Catolé, como também as palmeiras que davam nome à cidade, e sobretudo, aquela praça com tantas árvores diferentes e gigantes.

A curva é que tudo isso fazia parte de meu universo infantojuvenil. Das máquinas à eletricidade, dela às ondas do rádio e da telefonia, e, por conseguinte, à minha paixão pela física na escola e pela música daí em diante. Lá em casa o rádio era ligado direto em programas diversos, noticiários, cantorias, programas musicais. Levei muito o rádio para Tião Patrício ajeitar, quando toravam os cordões. Imaginava como algo tao incrível como um rádio podia ter relação com uma coisa simples com um cordão. Mas ao pensar sobre aquilo percebi que o cordão servia para mecanismo de passar as faixas e não para a captação de vozes propriamente dita.

Lembro em especial de uma situação que me é muito marcante e que resume tudo isso talvez, pela poder de síntese, pela relação da poesia com a tecnologia e por todo esse mundo que acabo de destacar e do qual a internet foi o capítulo seguinte - tendo eu já comentado sobre ela em relatos de sala de aula, em conversas com amigos e até em um memorial acadêmico. O rádio estava sintonizado em um programa de notícia daqueles em que uma pessoa mandava um recado para outra e o apresentador lia no ar. Tipo: “Fulano, fulana avisa que tal dia estará em tal lugar para receber a encomenda”. É gente, o mundo já foi mais inocente e bonito, em alguns aspectos! Pois bem, eu deitado na minha rede de tranças em tons andinos, balançando a digestão do almoço, escutei a canção tema do programa – que não sei se era da rádio Centenário de Caraúbas, da Rural de Mossoró ou alguma outra que papai tinha sintonizado. A canção eu não esqueço:

Deixa eu penetrar / Na tua onda / Deixa eu me deitar / Na tua praia / Que é nesse vai e vem / Nesse vai e vem / Que a gente se dá bem / Que a gente se atrapalha / Escute essa canção / Que é pra tocar no rádio / No rádio do seu coração / Você me sintoniza / E a gente então se liga / Nessa estação”
Como o tempo é de live, lá vai mais essa escrita passando na linha do tempo (kk).

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